Naquela noite consegui sair do pedestalzinho de ímã, tal como um condenado que escapa de seu grilhão. Percebi que minhas pernas, por estarem desde sempre justapostas, acabaram por colarem-se uma à outra e não havia modo de que uma se movesse à frente da outra para que eu pudesse dar um passo e outro ao invés de somente rodopiar, rodopiar...
Com certa dificuldade consegui levantar a tampa o suficiente para esgueirar-me dali para fora sem que meu deslocamento detonasse a melodia que se repetia ad eternum em seu apelo por movimento. Meu tamanho diminuto favorecia a execução do meu projeto: passaria com pouco esforço por debaixo da porta, apenas me desvencilhando daquela sainha engomada. Aos pulinhos, pude alcançar a beirada da cômoda e escorregar até a última gaveta, que estava entreaberta. Dali ao chão, era somente um salto: “toc” foi o barulho que fiz quando caí no piso frio.
Estranho era que, pela primeira vez liberta da rotina incessante em torno do mesmo eixo, a melhor sensação era a de não estar vendo minha própria imagem no espelhinho interno da tampa. Isso era mais catártico do que a chance de me movimentar em sentido diverso do que me fora determinado.
Meus braços franzinos por longo tempo erguidos por sobre a cabeça tinham agora espaço para novos movimentos, porém as delicadas maneiras de meu eterno balé não me prepararam para a força que eu precisava fazer agora para compensar a falta de mobilidade de minhas pernas. Olhava à volta à procura de minha imagem refletida, num cacoete do qual era impossível me desfazer. Era como se eu não existisse sem o meu reflexo.
Estava cansada mais do que de costume e sentia falta do magneto que me prendia os pezinhos para me dar equilíbrio. De onde estava, via a fresta por onde haveria de passar para ganhar o mundo. Eram poucos metros, a exata distância que me separava do destino que havia escolhido.
Meu plano estava delineado: precisava ter a atenção do gato sem acordar ninguém. Contava com o dono daqueles dois olhos gigantes que por vezes me observavam do fundo de uma floresta de pelos brancos. Se conseguisse ultrapassar a fronteira do quarto, não seria difícil chamar o bichano. Sabia que talvez ele eriçasse o pelo e fizesse algum barulho ao me ver, mas se eu conseguisse me fazer apetitosa, era o que contava. Precisava ser devorada. As entranhas do animal eram o único veículo de que dispunha para me levar para o lado de fora, contando que a resina de que sou feita não seria digerida e confiando com sua costumeira voracidade. Sendo engolida, ficaria nas tripas do felino até ser expelida para o mundo. A idéia me causava certo asco, mas não mais do que o que tinha suportado desde que fui colocada naquela caixinha.
Dividia a maciez do veludo acolchoado com outros objetos, anéis de pedras brilhosas e algumas correntinhas. A música era suave e de uma nostalgia profunda de algo imemorial. Sentia saudades de quando nunca fui criança e nunca brinquei no quintal. Uma mulher aparecia sempre junto com a música. Primeiro retinia o som metálico e seco da engrenagem da corda, depois vinham a música e a mulher. Ao abrir-se a caixinha, eu era postada no ímã, enquanto ela escolhia os adornos e se admirava. Tinha ganas de pular e me prender aos seus cabelos, tinha ganas de encarnar na sua pele.
Ainda me arrastando apoiada nos cotovelos, quase alcançava o vão entre o chão e a porta. Havia uma sensação de esperança e conquista que extrapolavam qualquer sentimento de impossibilidade e sofrimento que pudesse emergir naquele momento de esforço supremo. Senti uma presença enorme se aproximando, vislumbrei um vulto imenso a um metro do meu corpinho gelado e trêmulo, e logo um pé e outro e de novo o primeiro, que tratou de me estraçalhar.
Publicado no Livro Horizonte Noturno
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