Pedido

Se você alucina ou delira nos momentos em que devia raciocinar, por favor, não deixe de me avisar!

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"A minha Alucinação é enfrentar o dia-a-dia e o meu delírio é a experiência com coisas reais..." (Belchior)

Pour Elise

(Três minutos para liberdade)
Naquela noite consegui sair do pedestalzinho de ímã, tal como um condenado que escapa de seu grilhão. Percebi que minhas pernas, por estarem desde sempre justapostas, acabaram por colarem-se uma à outra e não havia modo de que uma se movesse à frente da outra para que eu pudesse dar um passo e outro ao invés de somente rodopiar, rodopiar...
Com certa dificuldade consegui levantar a tampa o suficiente para esgueirar-me dali para fora sem que meu deslocamento detonasse a melodia que se repetia ad eternum em seu apelo por movimento. Meu tamanho diminuto favorecia a execução do meu projeto: passaria com pouco esforço por debaixo da porta, apenas me desvencilhando daquela sainha engomada. Aos pulinhos, pude alcançar a beirada da cômoda e escorregar até a última gaveta, que estava entreaberta. Dali ao chão, era somente um salto: “toc” foi o barulho que fiz quando caí no piso frio.
Estranho era que, pela primeira vez liberta da rotina incessante em torno do mesmo eixo, a melhor sensação era a de não estar vendo minha própria imagem no espelhinho interno da tampa. Isso era mais catártico do que a chance de me movimentar em sentido diverso do que me fora determinado.
Meus braços franzinos por longo tempo erguidos por sobre a cabeça tinham agora espaço para novos movimentos, porém as delicadas maneiras de meu eterno balé não me prepararam para a força que eu precisava fazer agora para compensar a falta de mobilidade de minhas pernas. Olhava à volta à procura de minha imagem refletida, num cacoete do qual era impossível me desfazer. Era como se eu não existisse sem o meu reflexo.

Estava cansada mais do que de costume e sentia falta do magneto que me prendia os pezinhos para me dar equilíbrio. De onde estava, via a fresta por onde haveria de passar para ganhar o mundo. Eram poucos metros, a exata distância que me separava do destino que havia escolhido.
Meu plano estava delineado: precisava ter a atenção do gato sem acordar ninguém. Contava com o dono daqueles dois olhos gigantes que por vezes me observavam do fundo de uma floresta de pelos brancos. Se conseguisse ultrapassar a fronteira do quarto, não seria difícil chamar o bichano. Sabia que talvez ele eriçasse o pelo e fizesse algum barulho ao me ver, mas se eu conseguisse me fazer apetitosa, era o que contava. Precisava ser devorada. As entranhas do animal eram o único veículo de que dispunha para me levar para o lado de fora, contando que a resina de que sou feita não seria digerida e confiando com sua costumeira voracidade. Sendo engolida, ficaria nas tripas do felino até ser expelida para o mundo. A idéia me causava certo asco, mas não mais do que o que tinha suportado desde que fui colocada naquela caixinha.
Dividia a maciez do veludo acolchoado com outros objetos, anéis de pedras brilhosas e algumas correntinhas. A música era suave e de uma nostalgia profunda de algo imemorial. Sentia saudades de quando nunca fui criança e nunca brinquei no quintal. Uma mulher aparecia sempre junto com a música. Primeiro retinia o som metálico e seco da engrenagem da corda, depois vinham a música e a mulher. Ao abrir-se a caixinha, eu era postada no ímã, enquanto ela escolhia os adornos e se admirava. Tinha ganas de pular e me prender aos seus cabelos, tinha ganas de encarnar na sua pele.
Ainda me arrastando apoiada nos cotovelos, quase alcançava o vão entre o chão e a porta. Havia uma sensação de esperança e conquista que extrapolavam qualquer sentimento de impossibilidade e sofrimento que pudesse emergir naquele momento de esforço supremo. Senti uma presença enorme se aproximando, vislumbrei um vulto imenso a um metro do meu corpinho gelado e trêmulo, e logo um pé e outro e de novo o primeiro, que tratou de me estraçalhar.

Publicado no Livro Horizonte Noturno

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