(Para Jo)
Quando era pequena, imaginava uma outra eu que se passava por mim para que eu mesma continuasse brincando na hora de tomar banho. A outra eu comeria miúdos de frango, arrumaria os brinquedos e estudaria para as provas de matemática. Cresci com a idéia de que um dia viraria duas. Amadureci com esse absurdo pensamento latente.
Em meu minúsculo apartamento alugado, tinha a companhia de um gato esquivo. Apesar de sua índole arredia e dos humores que propagava, sinalizava vida no ambiente inerte do quarto e sala em que eu vivia. Era a quem eu dedicava atenção. Água e ração todos os dias, areia limpa uma vez na semana. Os cuidados comigo mesma cabiam num espelhinho quinze por dezoito de moldura alaranjada pendurado no banheiro. Cabelo amarrado, pele limpa, protetor solar. Meu corpo só subvertia minha pouca vaidade quando via o porteiro do edifício. Meu coração pulsava na garganta e no estômago. Contraía a barriga e passava a língua nos lábios para disfarçar a secura íntima que infalivelmente se manisfestava na minha boca.
Clientes são criaturas volúveis, infiéis, que pagam minhas contas. Não hesitam em ir com a primeira manicure livre da agenda. Por isso, eu tenho sempre mais unhas pra fazer do que horários na agenda. Não sem rir de mim mesma, deixava emergir minhas lembranças e me divertia imaginando que um dia seria duas e não precisaria de tanto esforço para sobreviver.
Atendia nos intervalos, atrasava o próximo horário, ficava até tarde, mas dava conta de todas. A vida de manicure é assim, ainda tem que dar graças a Deus que as unhas crescem e sempre tem trabalho.
Atendia nos intervalos, atrasava o próximo horário, ficava até tarde, mas dava conta de todas. A vida de manicure é assim, ainda tem que dar graças a Deus que as unhas crescem e sempre tem trabalho.
Terça feira é dia de pouco movimento. Esterelizei os alicates e organizei os esmaltes: escuros pra um lado e clarinhos pra outro. Substituí toalhas usadas por outras limpas. Estranhamente percebi que, dependendo de onde eu estava, me via inúmeras vezes refletida nos espelhos numa seqüência infinita. Me acometeu uma estranha tontura e entre espantada e incrédula, me avistei lixando o calcanhar de uma senhora gorda que tomava cafezinho com a perna apoiada na minha coxa. Me senti perdida. Mas era eu mesma, tinha certeza, porque eu sempre apertava a língua entre os lábios e franzia um pouco a sobrancelha quando estava concentrada. De pé, perplexa, parei de respirar por instantes. Olhei de novo para o salão e me vi agora curvada tentando desencravar a unha do dedão feio da senhora gorda. A recepcionista tocou meu braço e disse que a cliente das nove estava esperando. Saí, então, do meu pequeno transe e me certifiquei de que estava viva quando aspirei o ar que recendia acetona.
Com um meio sorriso, conduzi a mulher de esmalte lascado até a mesinha ao lado de mim mesma que estava agora pintando as unhas do pé da senhora gorda. Aquela eu, que já estava sentada, avisou que estava terminando e já ia pegar a próxima cliente. Não pude avaliar a situação, atendendo uma cliente após outra. Afinal, passei o dia de frente com alguém que, contraditoriamente, não me pareceu familiar. Observei meu porte, meu olhar, meu sorriso. Diferente daquela eu que surgira, os meus legítimos ombros eram curvados, denunciando uma falta de ânimo que parecia ancestral. Talvez tantos anos esperando para existir a tenham feito mais disponível e sorridente. Ou tivesse emergido de mim há muito tempo e assumido vida própria e só agora eu a enxergara. Ou era um lapso de mim, apenas ocupando lacunas às quais eu não estava sendo capaz de preencher.
A outra era tão ágil e gentil com as clientes quanto eu, despertando em mim uma inexplicável inveja. Se eu era ela como poderia invejá-la? Será que era isso que diziam sobre não estar bem consigo mesma, sobre não estar de bem com seu próprio eu? Éramos aparentemente iguais, mas eu percebia nela nuances intraduzíveis de vivacidade. O porteiro que me estreitava a traquéia nunca me olhara a ponto de me tirar do meu torpor natural. Apesar de ser manicure, minhas unhas nunca estavam arrumadas e não tinha tempo de me cuidar - ou não achava que valesse a pena. A semana passou tranqüila, todas as clientes foram atendidas no horário.
Sábado minha agenda ia até às nove da noite. Sempre saía do salão exausta e chegava em casa depois das dez. Naquele sábado estava menos cansada e planejei pedir para aquela eu tirar um filme na locadora. Quando terminei de passar o óleo secante nas unhas da última cliente, vi eu despontar no salão. E não estava disponível: de unhas pintadas e cabelos escovados, passou no caixa, recebeu o pagamento da semana e saiu de braços dados com o meu porteiro, que, afinal, eu bem sabia que jamais olharia para mim.
Gostei.
ResponderExcluirTu escreve muito bem ! Fui me sentindo na narrativa, eu que tantas vezes também desejei ser outra eu mesma - e talvez até tenha sido tantas vezes.
Felicidades no natal, que haja cada dia mais espaço para o sonho e para deixar emergir de si o tanto que tens para partilhar !
beijos
Elenara
Apesar de já saber de ti há muito, nunca imaginei que nos cruzaríamos justamente por aqui! Este ano me trouxe muitas alegrias e entre elas incluo ter conhecido pessoas especiais como tu. Obrigada pela atenção, espero que 2009 nos traga mais surpresas boas! abraço!
ResponderExcluirGostei muito! Muito bem escrito e uma ótima extração da realidade. Existem muitas e muitos que sonham em ser outra pessoa e nunca saem (querem sair?) do sonho. Porém, penso que, se quisesse, a protagonista poderia ter transformado o sonho em realidade. Bastaria tomar certas atitudes que precisam de certas condições, é verdade. Mas que também podem ser construídas com vontade e determinação. Poderia dizer que o sonho é o projeto da casa, a vontade e a determinação são a argamassa e o fazer é a própria transformação do sonho de ser outro(a) na realidade em que vivemos.
ResponderExcluirEnfim...
Parabéns por mais esse conto!! E claro, pelo seu aniversário que se aproxima, muitas felicidades, saúde e paz! Boas Festas! Abraços!
Flavio.
Obrigada, mesmo! É, tens razão em relação à construção da realidade. Quis enfatizar o quanto pode ser difícil nos vermos como os outros nos vêem, perceber que temos toda capacidade para ser o que queremos e ainda assim não conseguirmos sê-lo na plenitude. Parece tão fácil quando vemos no outro...
ResponderExcluirParabéns Rõ O texto está muito bem escrito.A veia da escritora está emergindo...Realmente representamos vários personagens no teatro da vida.Isto nos aprisiona e a alma livre busca soluçõesUma dela é partir para a fantasia "aquela que está ali não sou eu"então ela pode fazer o que quiser sem críticas!!!Discernir o ponto tênue que separa o sonho da realidade é que preserva nossa sanidade mental, quem não o difere acaba perdendo a razão...Mas quando o sonho nos engrandece como seres humanos nos traz felicidade aí sim devemos trazê-lo para a realidade.Nós podemos basta ,ter fé bjs tia Vera
ResponderExcluirÉ, acho que não é só a minha veia de escritora que está emergindo... És boa com as palavras e com a filosofia, não pare de comentar! Te adoro, Ro
ResponderExcluirMuito, muito bom. Excelente.
ResponderExcluirO que é a Realidade, se não um Delírio?
E quem é "eu" se não uma série de prsonagens fictícios refletidos nos espelhos numa sequencia infinita?
Se um dia quiser ler um livro que tem a ver com esse seu texto: "Um, nenhum e Cem mil! do Luigi Pirandello.
Muito bem.
Abraço,
Mundo Filosófico
http://mundofilosofico.blogspot.com/
Pelo endereço do blog, acho que estou falando com Diogo, certo?
ResponderExcluirÉ algo assim mesmo que pensei, quando escrevi este conto, mas acho mais fácil contar uma história, até porque dá margem à imaginação de quem lê. Geralmente dou meu recado, mas percebo o quanto as pessoas se põem na leitura quando comentam. Adoro isto! Obrigada pelo post e apareça sempre! Abraço
Bah, sem palavras, Rô!!
ResponderExcluirExcelente é pouco... Muito bem escrito. Gostoso de ler...
Guria, tu tinha que publicar um livro...
Olha, eu até poderia comer os miúdos de frango e estudar matemática (sempre gostei!), agora... arrumar os brinquedos... Pária (ainda vai acento?) lá! Só com um outro eu mesmo! hehehe!
ResponderExcluirBelíssimo texto. Gostosa leitura. Como disse o Cássio, quem sabe é hora de aventurar-se por estradas mais longas?
Muito bem escrito. Singelo, verdadeiro e real. Porque todos nós temos um outro, penso. Mas não que sejamos duas pessoas, mas temos dois lados, como o sol e a lua, ou a noite e o dia, que nunca se encontram. Sempre podemos atuar num lado apenas, pelo menos de cada vez. E às vezes os lados se opõem...Daí vêm as frustrações, porque temos que fazer escolhas que nem sempre são plenas.
ResponderExcluirAcho também que não deves abandonar ou esquecer este lado das letras. Não desperdiça teu dom!
bjs
Muito bem escrito. Leve, singelo e real. Porque todos nós, acredito, temos outro convivendo conosco. Não que sejamos duas pessoas, mas temos dois lados, como o sol e a lua, ou o dia e a noite. E só podemos viver um apenas, de cada vez. Às vezes, eles se opõem...Daí vêm as frustrações!Porque incluem escolhas, nem sempre plenamente satisfatórias.
ResponderExcluirTambém acho que não podes desperdiçar este talento com as letras. Continua sempre. bjs da mãe que te admira e ama muito. bjs