Pedido

Se você alucina ou delira nos momentos em que devia raciocinar, por favor, não deixe de me avisar!

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"A minha Alucinação é enfrentar o dia-a-dia e o meu delírio é a experiência com coisas reais..." (Belchior)

Uma amarga visão

De avental surrado, sempre a postos para as lidas pequenas, picava salsa e cebolinha com uma faca afiada. Se dava um talho no dedo, botava sal. Sal era bom, porque estancava o sangue e não deixava arruinar. Amarrava com um pedaço de trapo, dava dois nozinhos e pronto. Escolhia o feijão sem deixar nenhuma pedrinha, tirava a casca da laranja numa tira inteira.
Se achegava na vizinhança perto do meio dia para dar uma mão no serviço e amiúde livrava a barriga da miséria. Tinha habilidade e paciência, atributos essenciais pra fazer doce de laranja azeda. Precisava tirar a casca fina e o bagaço, ralar a parte branca até deixar bem lisinha, cortar em cruz e deixar de molho em nove águas, por nove noites, trocando a água todos os dias. Não sobrava nenhum amargo sequer. Pelo trabalho, podia provar um pouco do doce ou levar a sobra do almoço, com o que forrava o estômago antes de dormir.
Na época de eleição, fizeram seu registro civil. Pela aparência - e por conveniência - teria nascido em 1914. Já moça crescida, ainda não tinha marido, mas não perdia de vista a esperança. Recolhia os estojos vazios de ruge e os batons ressecados jogados fora.
- Nasci dia 10 de setembro, dizia.
Fugia do sol que nem gato da água, tinha horror de ficar mais preta. A chamavam bugra. Católica fervorosa, temente a Deus e devota de São Jorge, rezava novenas por encomenda e pedia pra Santo Antônio lhe providenciar casamento.
Hermitanha lavava pra fora. Era lavadeira dos soldados. O fardamento castigava suas mãos e suas costas, embora pesado, rendia bons trocados. Gostava de homens de farda, de sobrecenho cerrado. A austeridade dos uniformes a fascinava. Vislumbrava a figura de um militar altivo, impecável, grave e sóbrio, enquanto batia a roupa no tanque. Em suas ilusões, seria comandada pelo olhar do milico. Quando fosse dele, atenderia suas ordens e pressentiria suas vontades. Sem alcançar definição para seus anseios, apenas intuía que se tivesse significado para alguém de respeito, de alguma forma, mostraria ao mundo que também tinha valor e merecia ser respeitada.
Numa tarde mormacenta de janeiro, um homem fardado veio contratar o seu serviço. Alto, sério, formal. Não pôde disfarçar seu encantamento, suas pernas tremeram. Escondeu um sorriso incontido com a mão murcha da água com sabão. Arrancou o avental ensebado na inútil tentativa de disfarçar seu miserável aspecto. Ele, irrepreensível, acertou dia e preço e se foi. Encostada na cerca suja de terra, Hermitanha percebeu que estava descalça e enxergou-se esgedelhada na poeira vermelha e morna que pairava ao seu redor. O ar parado consentia às moscas solenizarem sua penúria.
Hermitanha correu se assuntar na vizinhança. Getúlio Souza Mendes parava na pensão da rua de cima. Sargento Mendes viera transferido semana passada. De essência rude e de pouca conversa, pegava serviço por alguns trocados, pois queria juntar dinheiro para comprar uma casa. E não recusava doce de laranja azeda. Os devaneios de Hermitanha exacerbaram-se, incorporaram rosto, nome, sobrenome e patente. Desejou secretamente que Getúlio Mendes assumisse seu destino.
Seu sargento deixava a roupa suja na segunda e recolhia a farda limpa e passada na quinta-feira. Trocavam palavras protocolares, sempre à distância. Nada havia de concreto, nenhuma proposta ou assanhamento. Ele era tão reservado quanto ela sempre sonhara. Nada de sorrisos, nem de conversa fiada. Seu pouco falar, sua imponência e frieza, tudo nele correspondia ao seu sonho matrimonial. Sargento Mendes não era homem de arreganhos e galanteios. Não esperava dele avanço algum. Por certo o apanharia pelo estômago. Aventou conquistá-lo com um doce de laranja azeda.
Comeu menos, naqueles dias. Sempre que lhe cabia algo, dava um jeito de trocar por um pouco de açúcar ou uns cravinhos-da-índia. Capinou o quintal da vizinha por algumas laranjas do pomar. Premeditou a investida de forma a aprontar o quitute justamente na segunda-feira.
Terminou o doce bem cedo e serviu-o disfarçando a rachadura do único pratinho que tinha em casa. Reservou a porção servida para apresentá-la na hora certa.
Quando Getúlio Mendes veio entregar a roupa, não titubeou em pedir um minuto antes de recebê-la. Correu do portão à cozinha e de lá voltou lá ao portão num só pulo. Perguntou à queima-roupa se ele gostava de doce de laranja. Como ela esperava, ele foi seco, mas não pôde dizer que não. Deixou escapar, quase se desculpando: - É.
Sem deixar tempo para recusas, ela emendou: - Aprontei hoje cedo, prova! - entregando a iguaria nas mãos do sujeito. Atingira seu ponto fraco. Ele recuou, mas não teve como esquivar-se.
Aflita, Hermitanha grudou os olhos no militar esperando sua reação. A fisionomia dele alterou-se de forma imprevista, seus olhos arregalaram-se e a sua boca arreganhou-se, de maneira a abocanhar o tolete de doce. Sua feição sisuda adulterou-se de forma quase sensual e devorou o bocado de um só golpe, esticando ainda a língua para arrematar uma gota da calda que escapulia pelo canto da boca. Quando terminou de engolir, apertou os olhos e, num movimento libidinoso, inclinou a cabeça um tantinho mais para que a língua alcancasse o pires e o pudesse lascivamente lamber.
A cena atingiu Hermitanha como um golpe. Não, não. Jamais seria daquele asqueroso. Sentiu uma dor lancinante no peito, vendo suas quimeras lançadas ao chão, arrancadas de suas entranhas e desfalecendo repousadas na saliva nojenta daquele ser repulsivo. Sentiu faltar-lhe o chão, seus sentidos fugiram por alguns instantes. Nauseada e cheia de repugnância, arqueou-se para tomar forças.
Repentinamente, apossou-se de si mesma e arrancou fôlego de suas profundezas para uma cuspida furiosa, que arremessou em cheio na cara daquele imundo que possuiu seu sargento.

7 comentários:

  1. Ótimo conto! Muito bem escrito, numa linguagem muito leve e gostosa de ler! Provavelmente, Hermitanha teria muito mais histórias para contar! Seria ótimo poder ouvi-las (ou ler). Estamos esperando...

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  2. ah, sim! mas nada como ter convivido com ela!
    obrigada!!
    abraço!

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  3. Angela: As passagens são descritas com tanta clareza e riqueza de detalhes que é possível imagina-las como se estivessem ocorrendo diante dos teus olhos.

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  4. muito bom,mas lembravamos apenas da lambida no pires e do odio eterno dela,aha,aha,aha.
    é sempre muito bom lembrar da Mita e suas histórias...

    bjs primas Lia e Lú

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  5. Rô:
    achei linda tua forma de contar um "delírio" alheio. Talvez por eu ter conhecido a Mita, tua história me tocou de forma particular. Sabes escrever bem e corretamente, isto é um talento.
    Parabéns! Continue escrevendo, hein! Para que a gente possa aproveitar.
    Ira

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