Pedido

Se você alucina ou delira nos momentos em que devia raciocinar, por favor, não deixe de me avisar!

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"A minha Alucinação é enfrentar o dia-a-dia e o meu delírio é a experiência com coisas reais..." (Belchior)

Rito de Passagem

Nasci de madrugada. Meu pai esperou horas na sala da maternidade, tomando café e andando. Quando fui colocada em seus braços, ele se atrapalhou ao desfazer-se da xícara e pingou café na minha mantinha branca.
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Tentei cobrir a cabeça para não deixar a claridade invadir o meu sonho. Aos poucos, a voz da minha mãe se misturava aos diálogos e as cenas se desfaziam em realidade. De novo o despertador. Depois da lenta tortura para abandonar o calor das cobertas, estava de uniforme sentada na cozinha tomando café. Na pressa para recuperar os minutos perdidos, bati o cotovelo na xícara e derramei o café na minha camiseta branca.
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Subi a lomba com a pressa de quem tem medo. Precisava chegar a tempo de assinar os papéis que mudariam meu estado civil. Os óculos escuros disfarçavam a noite mal dormida. O cartório estava lotado, algumas pessoas se acomodavam nas poucas cadeiras dali e outras se ajeitavam como podiam para aguardar sua vez. Avistei uma garrafa térmica com café numa mesinha perto da placa onde se lia "Retire uma Senha". Servi num copinho plástico que, de tão fino, deixou queimar os meus dedos. Alguém esbarrou no meu braço e o café saltou do copo para o meu impecável terninho branco.
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Tirei uns papéis da gaveta, recoloquei-os na ordem inversa. Deliberadamente, demorei mais do que o necessário para terminar a tarefa. Mexi o café sem pressa. Esvaziei a xícara até a metade e larguei-a no canto da mesa. O relógio marcou seis horas, já podia bater o ponto. Retoquei o batom no espelhinho que tinha na gaveta. Na intenção de levantar, me apoiei na mesa e desloquei a xícara, virando o resto do café sobre a minha camisa branca.
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Sentei na cama, tentei ajeitar o cabelo e lambi o dedo pra ajudar a tirar um pouco o borrão de rímel que manchava os meus olhos A bandeja era pequena para tudo: café, leite, pão, frutas, geléias e um pacotinho. Entre feliz e surpresa, não sabia ao certo por onde começar. Preferi então servir logo o café e abrir o presente que estava cuidadosamente colocado junto ao pãozinho. Por tanto querer cuidar, bati na xícara e o café se espalhou pela minha camisola branca.
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Repousava inerte, o rosto lívido e inexpressivo, as mãos entrelaçadas segurando um terço que levava para a eternidade. Da cintura para baixo, estava coberta de flores. As pessoas serviam café de um bule estrategicamente colocado em uma salinha contígua ao salão onde eu estava, o que dispersava o aroma da bebida que se misturava ao perfume de jasmim. Debruçando-se sobre meu corpo para um último recado, alguém inadvertidamente deixou escorrer café da xícara sobre o meu vestido imaculadamente branco.
(Publicado no livro Travessias)

3 comentários:

  1. Minha idéia não foi ser mórbida. Quando escrevi este conto, pensei no quanto certas coisas se repetem em diferentes momentos de nossas vidas: nosso nascimento, infância, casamento, vida a dois, maturidade. A morte não poderia ser excluída desse contexto (sem pânico!!)

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  2. Sure!...

    Tem certeza que tu não é budista?...

    : )

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