Pedido

Se você alucina ou delira nos momentos em que devia raciocinar, por favor, não deixe de me avisar!

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"A minha Alucinação é enfrentar o dia-a-dia e o meu delírio é a experiência com coisas reais..." (Belchior)

Transparência

Senti vontade de ficar  maisna cama. Era muito cedo e estava frio. Saí debaixo das cobertas num átimo, para não me arrepender. Sentia sede e verti dois copos d’água garganta abaixo. Vesti um casaco grosso, manta e luvas, para manter no corpo meu frágil calor sonolento.
O ônibus parou ao meu sinal. Desembarquei quase uma hora depois, após alguém puxar a corda da campainha. Caminhei até o prédio, subi o elevador e entrei na sala onde trabalhava. Estava claro, as persianas levantadas convocavam a luz do sol a tornar o ambiente translúcido. Apesar do ar gelado, abri a vidraça e deixei o vento desfazer o meu cabelo. Enxergava algumas pessoas, tive a impressão de que ninguém me via. O meu vasinho com flores e o porta-retratos não estavam sobre a mesa. Não quis tirar o casaco nem a manta, me desfiz apenas das luvas. Estava muito frio. Meu corpo tremia. Liguei o computador: nenhum e-mail. Tentei uma ligação para a lanchonete, mas não acertava a senha do telefone. Respirei fundo e me belisquei para me assegurar de que não estava sonhando.
Era indescritível o brilho delicado que reluzia e se espalhava ao meu redor. Enquanto isso, uma leveza extrema me invadia, nenhum esforço para me movimentar, apesar do peso das roupas. Senti minha bexiga cheia, precisava esvaziá-la com urgência. Fui até o banheiro. A porta estava extremamente pesada, a torneira apertada demais. Não tinha forças suficientes para comandar meus braços. Me enxerguei no espelho, estava pálida, mas bonita, como num retrato atras de um vidro, longínqua. Meu cabelo estava despenteado ainda pelo vento da janela, mas mantinha aquecidos meu pescoço e minha cabeça. Senti um arrepio estranho, o vento frio entrava pela fresta da basculante e era como se me atravessasse. Aspirava meu próprio hálito. Desejei o calor da minha cama, o aconchego dos cobertores, o calor de outro corpo. E me senti condenada àquela etérea sensação. Quando casar sara, depois dos quinze, no final de semana, no fim do mês, depois do inverno, no ano que vem... Esses prazos que apontavam sempre para outros prazos no infinito se diluíram no ar.
Minha embalagem à vacuo me poupou da deterioração no contato com o mundo. Agora havia m orifício no pacote por onde, ao mesmo tempo em que o ar entrava, escapavam-se minhas defesas. A minha secreta inadequação se dissipava enquanto minha imagem no espelho se desfazia. Com esforço, consegui abrir uma torneira. Respirava então com toda a pele, o corpo todo, o ar devorava meus pensamentos numa fagocitose inusitada e eu não era naquela hora mais que um espectro.
O ralo não deu vazão à água e a pia transbordou. Numa extrema tentativa, estendi o braço para fechar a válvula. A água cessou.  
Fui tragada pelo redemoinho que se esvaía pelo cano abaixo. 

4 comentários:

  1. Interessante a luz que tu joga sobre o corriqueiro. Tu consegue mostrar bem os momentos em que os nossos dois mundos, o interior e o exterior, se cruzam. Os momentos de insight, ou de meditação, para o budismo.

    Acho q muita gente se sente assim, pelo menos algumas vezes na vida.

    Mas a maioria parece extremamente adequada e tranqüila na rotina...

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  2. Quando dizes que 'a maioria parece extremamente adequada e tranqüila na rotina' entendo que a tua percepção é plenamente verdadeira, porém noto que o dizes com um tom decepcionado. E aí é que vejo um equívoco.
    É no corriqueiro e na rotina que a vida real acontece. Nossos anseios, nossos sonhos, nossas ilusões e angústias não aguardam momentos solenes para se manifestarem: hora de chorar, hora de ser feliz, hora de se arrepender. Isso brota de nós a todo momento, no ônibus, no elevador, no travesseiro, no banho, na reunião da escola. E sufocamos isso no mais das vezes, porque é preciso que assim seja para que possamos (sobre)viver.
    Não podemos (devemos?) sair pela rua chorando uma desilusão amorosa nem falar com nosso chefe nos regozijando por uma linda noite de amor.
    Amortecemos nossos sentidos na ingrata tarefa de tentar menos sofrer e de fazer com a nosssa essência humana interfira o menos possível no desempenho de nossas tarefas diárias.

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  3. Se todo mundo tiver essa consciência, ótimo.

    E achar a tranquilidade na rotina é o ideal.

    Mas minha "decepção" é justamente com o fato de que as pessoas parecem robôs...

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  4. Quando ue era mais jovem pensava que a rotina era a grande vilã em muitas decepções. Mas vi um dia minha filhota de apenas 3 anos um dia descendo a calçada em desabalada carreira pra se jogar em meus braços. Eu corria lomba acima e a estreitava, a mulher mais feliz do mundo. E isto acontecia todos os dias, na mesma hora, do mesmo jeito. E esta rotina eu pedia a Deus que acontecesse sempre, e se possível não acabasse. Foi então que vi que não é a rotina que mata, mas o que ela significa pra nós, se nos realiza ou se nos insatisfaz. O maior vilão são nossos atos, realizadores ou insossos.

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