Pedido

Se você alucina ou delira nos momentos em que devia raciocinar, por favor, não deixe de me avisar!

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"A minha Alucinação é enfrentar o dia-a-dia e o meu delírio é a experiência com coisas reais..." (Belchior)

Epílogo



Por fora, era uma caixa comum, com tampa de dobradiça e uma travinha que fazia plec quando trancava. Cabia na palma da mão de Adélia. Brincava de guardar perfume de flor, zunido de mosquito e clarão de luar. Sempre que queria guardar algo muito fluido, volátil, etéreo ou fugaz, só conseguia se fosse naquela caixinha. Sempre cabia mais. Resgatava as essências de súbito. Cada item emergia imediatamente do fundo quando se reconhecia em um sentido ou desejo de Adélia.

O repertório reunia desde som de pingo d’água até facho de estrela cadente. Ali depositava suspiro, engasgo, luz de pirilampo, barulho da chuva, farfalhar de folhas ao vento. Acostumara ir guardando na caixinha e vivendo dali o que queria. Descomplicava certas situações, mas essa facilidade furtava-a de renovar o acervo. Sentia a monotonia, a embriaguez de um universo tão rico, mas tão conhecido.

Talvez por isso Adélia amasse com ardor o que jamais conseguira capturar: os raios nas tempestades. Ficava hipnotizada. Sentia uma vibração que lhe subia pela espinha e aquecia a garganta e o pulmão. O coração disparava e, estranhamente, essa convulsão a acalmava e entorpecia. A beleza fugidia amalgamada com o terror arrebatador não cabiam na caixinha e era preciso aguardar que acontecessem, sem sua intervenção. Não conseguia paralisar os raios e fazê-los manifestarem-se à sua ordem ou desejo.

A perturbação que lhe causavam os relâmpagos nos temporais era algo que aguardava como quem espera por um doce tirano: entre encantada e subjugada, o transcurso de um temporal alucinava Adélia. No seu microquarto, quando as nuvens enegreciam e a tormenta se avizinhava, ela abria logo a caixinha, sempre na fremente esperança de que pudesse esconder algum. Pedia aos céus a chance de prender um raio na caixinha. Sempre.

Naquela noite, ao som do primeiro trovão, Adélia apertou sua caixinha contra o peito e desceu a escadaria ao encontro de seu cobiçado elemento.  Relâmpagos alumiavam o percurso. A ventania e a chuvarada dificultavam aquela determinada perseguição. Prostada, cumprindo sua idolatria na solidão da tempestade,  abriu a caixa,  com a convicção inabalável de que arrestaria seu tesouro. E, nesse abrir a tampa, saíram da caixinha todas as auroras e crepúsculos, como num caleidoscópio, sons burbulhantes de cascatas, arco-íris e aromas de anis e fogueiras flamejantes e sussurros de amores. E já não dIscernia se vinham deles ou de si brotavam tal enlevo e fascinação. A desejada luz cegante e colérica dirigiu-se certeira ao fundo da caixa. Com a alma arrebatada, Adélia cerrou a tampa.

Agora tinha o êxtase das tempestades ao seu dispor. E sempre que quisesse e quando desejasse. E já não dependia dos dias e das noites e do tempo.
...

Na tormenta seguinte, Adélia lançou pela janela a caixinha.





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