Pedido

Se você alucina ou delira nos momentos em que devia raciocinar, por favor, não deixe de me avisar!

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"A minha Alucinação é enfrentar o dia-a-dia e o meu delírio é a experiência com coisas reais..." (Belchior)

Antes que o mundo acabe




Diante dos apelos (emocionais, comerciais e outros tantos) a que somos submetidos nessa época do ano,  branda pausa  e os olhos piscam mirando o futuro. Mesclam-se planos, novo ano, renascimento, recomeço. A cada volta da terra ao redor do Sol renovam-se esperanças, desejos são reforçados, é dada trégua aos problemas.  O amanhã se amplia: é o próximo segundo, a próxima semana, o próximo ano e o resto da vida.  Os lares brilham, há uma aura de luz e contentamento, uma quase obrigação de ser feliz: ho-ho-ho! Abrem-se os corações e as carteiras. Por que não comprar um pouco de felicidade? Porque não comprá-la  e ainda presenteá-la a alguém, a muitos alguéns? E não quero aqui registrar nenhum tipo de indignação com festividades ou revolta contra o transe coletivo que ignora “o verdadeiro sentido do natal”. Penso que já há bastante  gente preocupada com estas questões.  
Registro sim uma insustentável circunspeção,   pois esta atmosfera me atinge silenciosamente.   Porque passamos o tempo todo resolvendo problemas, avaliando o necessário, o desnecessário, o lógico e o absurdo e deglutindo o fatal. O tempo todo tomando decisões, fazendo escolhas. De certa forma, consolidando nossa (ilusória?) supremacia em relação ao nosso próprio futuro.
  
E essa inquietação por momentos – esses momentos – falece em mim e brotam as memórias como num filme de cinema mudo. Desaparecem pacificamente os “por quês?”.   A mim assim parece, assim se dá. Uma espécie de autismo relâmpago que me lança num estado narcótico.
Dizem que o destino é um parente rico do acaso (gosto mais de pensar que o acaso seja um parente pobre do destino...) Cruzar uma esquina, perder o ônibus, errar o caminho. Dormir demais, extraviar uma nota fiscal. Quando escapa um minuto. Pequenos eventos deslocam acontecimentos no tempo e, talvez, o rumo das nossas vidas. Estamos nós no seu comando ou somente a contemplá-la? Uma interação que desassosega.

Não encontro, por mais um ano,  melhores palavras do que as que abaixo transcrevo.  Antes que o mundo acabe, nada mais apropriado do que dar graças. 
"Dou graças ao Senhor pelo traçado irregular da vida, e tantas curvas nos afetos, e as surpresas cotidianas que aplacam desesperanças, e as amizades indeléveis, e os encontros de inesperada alegria, o peso leve do fardo amado, o vigor de abraços que sacramentam laços definitivos, e a identidade que se traduz na limpidez do olhar.
Graças pelo banco de praça, e seus velhos entretidos em memoráveis jogos, o sino repicando na torre da matriz, o sorveteiro assediado por crianças, a moça feia enfeitada de beleza pelo coração apaixonado, correspondida pelo belo moço que deu as costas a tantos rostos que se julgam bonitos.
Dou graças pelo xale que agasalha a mulher na cadeira de balanço, embalada de recordações, e a corrida do menino eivado de júbilo ao encontro do colega, e o vaso de flor colorindo a janela, e a foto dos avós no criado-mudo, e o vinho nobre guardado para uma ocasião especial, e o pão besuntado de manteiga liturgicamente servido e sorvido no café com leite.
Deus, graças pela poesia e a dúvida, a matemática e tão poucas adições numa vida de subtrações, a filosofia, e a estupidez dos céticos, os belos horizontes e as tardes de trovões e raios, os prêmios e as derrotas, o sucesso e o fracasso, o que se fala e o que se cala.
Graças, enfim, pela vida e pela morte, esta senhora que nos aguarda de braços abertos numa esquina da existência, pronta a nos seduzir e conduzir irremediavelmente à tua presença, onde haveremos de, afinal, entender por que todas as tuas ações são de graça. “...
Frei Betto (Ação de Graças – excerto)


 


Um comentário:

  1. Belíssimo,uma descrição da vida ,como ela é .Uma felicidade poder fazer esta oração ,que não pede nada ,que aceita a vida como ela se apresenta e que espera dela aquilo que ela pode nos dar.Parabéns Rô teus textos são realmente primorosos bjus

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