Pedido

Se você alucina ou delira nos momentos em que devia raciocinar, por favor, não deixe de me avisar!

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"A minha Alucinação é enfrentar o dia-a-dia e o meu delírio é a experiência com coisas reais..." (Belchior)

Pequeno Delírio Noturno de Lili

Flutuava no céu uma lamina curva de halo morno. Lili respirou o ar quente incorporado à luz fosca que atravessava a janela.
Pesava o corpo solto na constelação de sentidos, macio da cama, ímpeto febril de partir noite adentro.  Embalava o inconsciente a alma leve.
Lili escuta um chamado e responde:  
- Quero.
Espontânea e imprudente alternância entre vigília e inconsciente, Lili abandona a lucidez.
Vastidão. Imenso. A respiração se ausenta. Voltava. Partia.
- Quero.
Deixa-se ir, volta a si, dança suspensa num balé de silêncio, entorpecida no vácuo verde escuro, azul ilícito. Volta. Vai.
Lili se transporta, sumidouro de vultos: líquido,  aqui. Vagalume, era de antes e de depois. Agora lá. Inteira, braile, vidro de esmalte. Aqui. Molhado. De novo lá.
Ausenta-se na rota etérea que se vincula de si para o outro lado, caminho fulgurante de  pontos luminosos. Lugar certo de partida, inexatidão de destino.
Sim. Lili agora sente uma presença eterna. Tangível, que sabe dela tanto mais que ela mesma. Estava lá sempre. Como não percebia? O vulto se define a cada ida. Estende a mão. A cada breve encontro, lapso de encontro. Ela vai. Agora já pode sentir o cheiro. O gosto. Que já sabia.
- Quero.
Precipita-se na bruma e escoa no avesso do aqui. Em braços que embalam sua jornada, reverbera no infinito.
Lili adormece.
- Quero...

Conto de fadas numa tarde chuvosa


Era uma vez, num reino tão tão distante, do outro lado do lago, um Príncipe, que estava com o coração vazio e escuro. E havia uma Princesa que vivia na tristeza, do lado de cá do lago, numa torre alta altíssima, nada nem ninguém nunca tinha subido lá.  Não havia portas na torre, só uma janela. Era cercada por um formoso jardim, onde sonhava estar quando seu coração estivesse aquecido e feliz.
A bruxa má a condenara a viver ali até que um Príncipe molhado a flechasse.
A Princesa sabia que isso era impossível. Ela sabia que existiam Príncipes, mas os Príncipes molhados eram improváveis. Eles não saem de seus castelos quando chove. Também jamais cogitam molhar seus cavalos.
A prisão a que estava condenada era feita mais de dias de sol e de guarda-chuvas do que de concreto. A Princesa brincava com sua bola de ouro, no alto mais alto da torre escura.
Certo dia o Príncipe, em uma de suas caçadas, se distraiu e desviou sua rota, justamente num dia em que uma tempestade se aproximava. Cavalgou muito, estava cansado e sem dormir há muito tempo.
E a chuva começou. O Príncipe , desnorteado, correu para se abrigar da chuva na aba de uma torre (existe isso?) que avistou no caminho. Estava com as flechas armadas. Quando se encostou na parede da torre, uma flecha disparou.
Então, quis o acaso que a Princesa estivesse na janela olhando a chuva naquele instante, porque ela tinha um especial fascínio pelo barulho da chuva e pelos relâmpagos. E pela obra do destino, foi atingida pela flecha do Príncipe molhado.
Seu ferimento ardeu. E ardia tanto, tanto, que toda ela era calor e sua febre derreteu sua bola de ouro e derreteu seu quarto e as paredes do quarto e as paredes da torre inviolável.

E ela encontrou o Príncipe molhado, cansado e com medo, dentro de seu jardim encantado. 
E o calor que emanava dela esquentou o coração vazio  e escuro do Príncipe, que,  libertando a Princesa, libertou seu próprio coração.

O que trazes pra mim?




Quando tinha oito anos, minha filha me perguntou se era verdade que o Coelho da Páscoa não existia, se era eu quem comprava os ovos de páscoa e os escondia,  se as marcas das patinhas no chão eram forjadas para enganá-la.
Acreditem, foi um dos momentos mais tensos que já passei.
Porque sofrer uma desilusão é duro, mas ter que confirmar – e de certa forma ter causado – uma desilusão a uma pessoa que se ama (uma pessoinha que acredita em mim acima de qualquer suspeita) é mais duro ainda.
É ver a inocência se esvair de uma alma.
Por mais que pareça  banal, me senti diante de uma questão intrínseca ao ser humano: a ilusão que nos acompanha. E a desilusão que nos desconcerta e que  nos obriga a rearranjar nossos pensamentos. É quando testamos a nossa capacidade de  aproveitar o que sobra do engano de nossos sentidos para reorganizar o sentido de nossos enganos.
Talvez uma das primeiras oportunidades que a vida nos dá de treinarmos para tantas outras situações que vão se apresentando diante de nós ao longo de nossa trajetória.
Porque há a natural tendência de nos sentirmos traídos, mas, ao mesmo tempo, o sentimento de que fomos tolos o suficiente para nos deixarmos enganar.
Tive, sim, que admitir minha parcela de responsabilidade nesse engodo, mas não sem tentar justificar meus motivos e também demonstrar o quanto isso nos tinha feito felizes nos anos que já tinham se passado. Afinal,  uma ilusão pode ter um tanto de fantasia e na fantasia podemos partilhar os anseios e de cada um. Anseio de acreditar, fazer feliz, de sonhar.
E as deduções são inevitáveis. Instantes depois, veio a sentença: - Mãe, então... o Papai Noel também, né?
De certa forma, senti até um alívio, por não ter que passar de novo por essa oito meses mais tarde...  
              

Antes que o mundo acabe




Diante dos apelos (emocionais, comerciais e outros tantos) a que somos submetidos nessa época do ano,  branda pausa  e os olhos piscam mirando o futuro. Mesclam-se planos, novo ano, renascimento, recomeço. A cada volta da terra ao redor do Sol renovam-se esperanças, desejos são reforçados, é dada trégua aos problemas.  O amanhã se amplia: é o próximo segundo, a próxima semana, o próximo ano e o resto da vida.  Os lares brilham, há uma aura de luz e contentamento, uma quase obrigação de ser feliz: ho-ho-ho! Abrem-se os corações e as carteiras. Por que não comprar um pouco de felicidade? Porque não comprá-la  e ainda presenteá-la a alguém, a muitos alguéns? E não quero aqui registrar nenhum tipo de indignação com festividades ou revolta contra o transe coletivo que ignora “o verdadeiro sentido do natal”. Penso que já há bastante  gente preocupada com estas questões.  
Registro sim uma insustentável circunspeção,   pois esta atmosfera me atinge silenciosamente.   Porque passamos o tempo todo resolvendo problemas, avaliando o necessário, o desnecessário, o lógico e o absurdo e deglutindo o fatal. O tempo todo tomando decisões, fazendo escolhas. De certa forma, consolidando nossa (ilusória?) supremacia em relação ao nosso próprio futuro.
  
E essa inquietação por momentos – esses momentos – falece em mim e brotam as memórias como num filme de cinema mudo. Desaparecem pacificamente os “por quês?”.   A mim assim parece, assim se dá. Uma espécie de autismo relâmpago que me lança num estado narcótico.
Dizem que o destino é um parente rico do acaso (gosto mais de pensar que o acaso seja um parente pobre do destino...) Cruzar uma esquina, perder o ônibus, errar o caminho. Dormir demais, extraviar uma nota fiscal. Quando escapa um minuto. Pequenos eventos deslocam acontecimentos no tempo e, talvez, o rumo das nossas vidas. Estamos nós no seu comando ou somente a contemplá-la? Uma interação que desassosega.

Não encontro, por mais um ano,  melhores palavras do que as que abaixo transcrevo.  Antes que o mundo acabe, nada mais apropriado do que dar graças. 
"Dou graças ao Senhor pelo traçado irregular da vida, e tantas curvas nos afetos, e as surpresas cotidianas que aplacam desesperanças, e as amizades indeléveis, e os encontros de inesperada alegria, o peso leve do fardo amado, o vigor de abraços que sacramentam laços definitivos, e a identidade que se traduz na limpidez do olhar.
Graças pelo banco de praça, e seus velhos entretidos em memoráveis jogos, o sino repicando na torre da matriz, o sorveteiro assediado por crianças, a moça feia enfeitada de beleza pelo coração apaixonado, correspondida pelo belo moço que deu as costas a tantos rostos que se julgam bonitos.
Dou graças pelo xale que agasalha a mulher na cadeira de balanço, embalada de recordações, e a corrida do menino eivado de júbilo ao encontro do colega, e o vaso de flor colorindo a janela, e a foto dos avós no criado-mudo, e o vinho nobre guardado para uma ocasião especial, e o pão besuntado de manteiga liturgicamente servido e sorvido no café com leite.
Deus, graças pela poesia e a dúvida, a matemática e tão poucas adições numa vida de subtrações, a filosofia, e a estupidez dos céticos, os belos horizontes e as tardes de trovões e raios, os prêmios e as derrotas, o sucesso e o fracasso, o que se fala e o que se cala.
Graças, enfim, pela vida e pela morte, esta senhora que nos aguarda de braços abertos numa esquina da existência, pronta a nos seduzir e conduzir irremediavelmente à tua presença, onde haveremos de, afinal, entender por que todas as tuas ações são de graça. “...
Frei Betto (Ação de Graças – excerto)


 


Recomendações da Raposa para Redes Sociais




- Quem és tu? perguntou o principezinho. Tua foto de perfil é bem bonita...
- Sou uma raposa, disse a raposa.
- Liga a webcam e vem brincar comigo, propôs o principezinho. Estou tão triste...
- Eu não posso brincar contigo, disse a raposa. Não me cativaram ainda.
- Ah! desculpa, disse o principezinho. Após uma reflexão, acrescentou:
- Que quer dizer "cativar"?
- Tu és novo por aqui, disse a raposa. Que procuras?
- Procuro adiconar amigos, disse o principezinho
- Que quer dizer "cativar"?
- Os amigos por aqui, disse a raposa, têm perfis atrativos e caçam. Produzem sua imagem, informações, status e muitos vivem dessa ilusão. Alguns aproveitam para compartilhar interesses. Eu caço galinhas e os caçadores me caçam.
- Que quer dizer "cativar"? insistiu o princepezinho.
- É uma coisa muito esquecida, disse a raposa. Significa "criar laços".
- Criar laços?
- Exatamente, disse a raposa. Tu não és ainda para mim senão um garoto inteiramente igual a cem mil outros garotos. E eu não tenho necessidade de ti. E também necessidade não tens de mim. Não passo a teus olhos de uma raposa igual a cem mil outras raposas. Mas, se tu me cativas, nós teremos necessidade um do outro. Serás o único no mundo. E eu serei para ti única no mundo...
- Começo a compreender, disse o principezinho.
- Existe uma flor. . . eu creio que ela me cativou ...
- É possível, disse a raposa. Vê-se tanta coisa nesses sites de relacionamento...
- Oh! não foi num desses sites, disse o principezinho.
A raposa pareceu intrigada:
- Num outro site?
- Acho que sim.
- Há caçadores nesse lugar?
- Não.
- Que bom ! E galinhas?
- Também não.
- Nada é perfeito, suspirou a raposa.
Mas a raposa voltou à sua ideia.
- Minha vida é monótona. Eu entro no face, instagram e adiciono as galinhas e os homens entram e me adicionam. Galinhas se parecem e todos os homens se parecem também. E por isso eu me aborreço um pouco. Mas se tu me cativas, minha vida será como que cheia de sol. Reconhecerei se estás on line, porque teus posts serão para mim diferentes dos outros. Os outros posts me farão ficar entediada. O teu me chamará para fora da toca, como se fosse música. E depois, sabe aquele vídeo com os campos de trigo? Eu não como pão. O trigo para mim é inútil. Os vídeos com campos de trigo não me dizem coisa alguma. E isso é triste. Mas tu tens cabelos cor de ouro. Então será maravilhoso quando me tiveres cativado. O vídeo que tem o trigo, que é dourado, fará lembrar-me de ti. E eu amarei o vídeo que tem o trigo e o barulho do vento no trigo...
A raposa calou-se e considerou por muito tempo o príncipe:
- Por favor... cativa-me disse ela.
- Bem quisera, disse o principezinho, mas eu não tenho muito tempo, amigos a adiconar e muitos links a visitar.
- A gente só conhece bem as coisas que cativou, disse a raposa. Os homens não têm mais tempo de conhecer coisa alguma. Encontram tudo prontinho nas funpages do facebook. Mas não existem fun pages com amigos prontos, os homens não têm mais amigos, se tu queres um, cativa-me!
- Que é preciso fazer? perguntou o principezinho.
- É preciso ser paciente, respondeu a raposa. Tu te mostrarás um pouco a mim, de longe, como se estivéssemos sentados na relva. Eu te observarei. A teus posts, teus comentários, os comentários de teus amigos. Tuas fotos. São os espaços por ondes apareces e mostras quem és: se és coerente, íntegro. Porque ninguém consegue manter uma ilusão do que quer parecer ser o tempo todo. E a cada dia, chegaremos mais perto ...
No dia seguinte o principezinho se logou.
- Teria sido melhor se tivesses entrado à mesma hora, disse a raposa. Se tu vens, por exemplo, às quatro da tarde, desde as três eu começarei a ser feliz. Quanto mais a hora for chegando, mais eu me sentirei feliz. Às quatro horas, então, estarei inquieta e descobrirei o preço da felicidade! Mas se tu vens a qualquer momento, nunca há hora de preparar o coração ... É preciso ritos.
- Que é um rito? perguntou o principezinho.
- É uma coisa muito esquecida também, disse a raposa, É o que faz com que um dia seja diferente dos outros dias; uma hora, das outras horas.
...
 
Um dia especial para algém especial: meu pai.
Ele não foi pai apenas porque emprestou seus genes para gerar quatro pessoas. Se vendo pai, escolheu a paternidade por livre vontade, por amar sem limites.
Foi o homem que me acolheu em seu colo...
e sorriu ao meu sorriso. E segurou minha mão no perigo e espantou o monstro do meu armário e me aparou nos tropeços. Se falhou em algum momento, foi brilhante em inúmeros exemplos.
Provou que um pai não torna-se pai quando nasce seu filho, nem quando adota uma criança, nem quando dá seu nome a ela.
Transforma-se em pai à medida que reivindica para si a responsabilidade de fazer vingar a vida, forte por natureza e frágil pelas circunstâncias. O braço forte do homem se deixa tomar pela suavidade do embalo e da delicadeza do afago. Fortalecem-se os laços: de uma pessoa se faz um pai, um homem se torna um herói. Uma criança se torna pura admiração e leva consigo a certeza de que o amor e a dedicação fazem as pessoas melhores e que se deve acreditar que sempre há novas possibilidades.
Pai, te amo!
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A liberdade de ser mãe


Nesse ano, quiseram as circunvoluções da Terra ao redor do Sol que o domingo do Dia das Mães coincidisse com a comemoração da Abolição da Escravatura. Já comentava isso minha querida amiga Rita Maria Oliveira Mendes dia desses.
Não vejo coincidência mais oportuna para falar sobre ser mãe.
Fui mãe aos 25 anos, e, desde quando carregava minha filha na barriga, já começaram minhas próprias abolições. A abolição do uso das roupas justas e das linhas curvas do meu próprio corpo....
E junto com isso, a liberdade de sentir que carregar um filho traz muito mais felicidade do que usar um jeans apertadinho.
Logo em seguida, abolição da rigidez de horários, a libertação de atitudes individualistas. Um filho nos alforria de ser um, de ver sob a ótica individual. De repente, amamos todas as crianças do mundo e todas as crianças do mundo habitam a criança que temos nos braços. Sentimento de universalidade, compartilhamento, alegria e doação.
Fui mãe novamente aos 31 anos e, de novo, a vida me brinda com novas abolições. Uma criança coberta de vernix que repousou em meu colo me trouxe outra liberdade: a de me sentir capaz de, mais uma vez, olhar o mundo com uma fé inabalável no futuro, nas pessoas.
E a abolição é constante, diária, pequenos grilhões que nos prendem a crenças ultrapassadas e que vão lindamente se quebrando com palavras, gestos e comportamentos ingênuos, cândidos, iteligentes ou sagazes.
Fui filha de uma mulher (menina?) de 18 anos que certamente comigo nos braços foi abolida de muitas das tantas prisões a que um ser humano está sujeito. E que me ensinou que a liberdade pode ser mais que um sonho, para que eu pudesse dizer isso aos meus filhos hoje.
Obrigada, mãe, pela felicidade de ser tua filha.
Obrigada, meus filhos, por me fazerem tão feliz sendo a mãe de vocês.

Consumi(a)ção

Alaíde ouve um latido.
Outro latido, outro. Os cães ladram no anonimato, indecifravelmente. Intermitentemente.
O calor paira no silêncio da noite. Os canteiros, a terra e a grama recendem na escuridão.
Alaíde consuma-se na matilha e late.

Um sopro

Obrigada a todos pelo que me desejaram para o Ano Novo. Inclusive inspirações.
Eu desejo a todos, para esse ano e para toda a vida, também, muitas expirações. A toda expiração,  corresponde uma inspiração. É um equilíbrio vivo, imperturbável, uma correspondência inexorável 1:1. Assim, quando a gente vai deixando o ar sair e nota que sobra ainda um tantinho lá no fundo e aperta o tórax e vai descendo a força pelos músculos (uau!!) da barriga, da pélvis e se contrai toda e daí, sim, tem quase certeza de que não sobrou nadinha. Dessas que nos esvaziam até o último mililitro de ar, que zeram nosso barômetro interno.
Pausa.
Só então é possível entregar-se ao inexorável movimento contrário, instintivo e libertário, que nos permite, aí, sim, a invasão total que é justamente ela: a inspiração.  
A inspiração é aspiração, é levar pra dentro o que está fora e fazer disso que se ‘aspira’ algo que valha a pena ser expirado, que modifique algo em nós mesmos ou em alguém. Que nos nutra e limpe.  É estar vivo, é não ser indiferente ao que acontece bem debaixo do nosso nariz, é ser solidário com a dor e com a felicidade próxima, impelidos pelo sentido que isso dá à nossa vida. Só. É se encher e se esvaziar, porque, para dividir o espaço que está fora, é preciso criar um espaço dentro de nós. Desvencilhar-se de entulhos, libertar os demônios, deixar-se flutuar no nada. Para dar lugar ao oxigênio que nos faz vivos.    
Feliz Ano Novo!!!

Encontro



Tinha a sensação de que um dia ia se esquecer de respirar.



Inspira, expira. Inspira, expira. Inspira, expira. Para.


O ar que aspirava percorria estritamente o estritamente necessário trajeto fisiológico e, não raro, se percebia apnéica. Este estado de suspensão podia durar segundos ou minutos e paralisava toda a sua existência. Sua alma se desprendia do calabouço de seu corpo, inerte, então. Um lapso de tempo em que seu corpo se autossustentava.


Inspira, expira. Inspira, expira. Para.


Permitia a navegabilidade do ar e reinaugurava os pulmões depois de cada suspensão. A parada metaforizava um ferrolho - ao inverso. No limbo, o mapa dos significados que eram indecifráveis tornava-se nítido, límpido. Sabia que pertencia ao inconsciente a autoridade sobre seu pulsar, porém, havia momentos em que impunha a si toda responsabilidade por uma eventual falha no processo.


Inspira, expira. Para.


O movimento do ar traduzido no sopro de vento, sustentava, ainda que ilusoriamente, a sua sobrevivência inerte. O mundo e ela comungavam do mesmo fôlego: o vento. A inevitabilidade do aspirar e expelir era implacável e necessária e, naqueles intervalos, permanecia e celebrava a vida no seu próprio hálito.


Para.



Epílogo



Por fora, era uma caixa comum, com tampa de dobradiça e uma travinha que fazia plec quando trancava. Cabia na palma da mão de Adélia. Brincava de guardar perfume de flor, zunido de mosquito e clarão de luar. Sempre que queria guardar algo muito fluido, volátil, etéreo ou fugaz, só conseguia se fosse naquela caixinha. Sempre cabia mais. Resgatava as essências de súbito. Cada item emergia imediatamente do fundo quando se reconhecia em um sentido ou desejo de Adélia.

O repertório reunia desde som de pingo d’água até facho de estrela cadente. Ali depositava suspiro, engasgo, luz de pirilampo, barulho da chuva, farfalhar de folhas ao vento. Acostumara ir guardando na caixinha e vivendo dali o que queria. Descomplicava certas situações, mas essa facilidade furtava-a de renovar o acervo. Sentia a monotonia, a embriaguez de um universo tão rico, mas tão conhecido.

Talvez por isso Adélia amasse com ardor o que jamais conseguira capturar: os raios nas tempestades. Ficava hipnotizada. Sentia uma vibração que lhe subia pela espinha e aquecia a garganta e o pulmão. O coração disparava e, estranhamente, essa convulsão a acalmava e entorpecia. A beleza fugidia amalgamada com o terror arrebatador não cabiam na caixinha e era preciso aguardar que acontecessem, sem sua intervenção. Não conseguia paralisar os raios e fazê-los manifestarem-se à sua ordem ou desejo.

A perturbação que lhe causavam os relâmpagos nos temporais era algo que aguardava como quem espera por um doce tirano: entre encantada e subjugada, o transcurso de um temporal alucinava Adélia. No seu microquarto, quando as nuvens enegreciam e a tormenta se avizinhava, ela abria logo a caixinha, sempre na fremente esperança de que pudesse esconder algum. Pedia aos céus a chance de prender um raio na caixinha. Sempre.

Naquela noite, ao som do primeiro trovão, Adélia apertou sua caixinha contra o peito e desceu a escadaria ao encontro de seu cobiçado elemento.  Relâmpagos alumiavam o percurso. A ventania e a chuvarada dificultavam aquela determinada perseguição. Prostada, cumprindo sua idolatria na solidão da tempestade,  abriu a caixa,  com a convicção inabalável de que arrestaria seu tesouro. E, nesse abrir a tampa, saíram da caixinha todas as auroras e crepúsculos, como num caleidoscópio, sons burbulhantes de cascatas, arco-íris e aromas de anis e fogueiras flamejantes e sussurros de amores. E já não dIscernia se vinham deles ou de si brotavam tal enlevo e fascinação. A desejada luz cegante e colérica dirigiu-se certeira ao fundo da caixa. Com a alma arrebatada, Adélia cerrou a tampa.

Agora tinha o êxtase das tempestades ao seu dispor. E sempre que quisesse e quando desejasse. E já não dependia dos dias e das noites e do tempo.
...

Na tormenta seguinte, Adélia lançou pela janela a caixinha.





MUDA



A incapacidade de emitir um som traduzia um vão seu e foi apossando-se dela um sentido de que havia somente ausência em si. O silêncio não mais a incomodava, sentia-o integrado a si mesma. Era agora impossível determinar se a voz não lhe saía da boca por incompetência ou recusava-se a falar porque acreditava que nada havia a ser dito.

Então o que havia se esquecido de esperar aconteceu. A garganta murmurou notas tartamudas, articuladas pela língua em sintonia com os lábios, por onde pode perceber atravessar toda uma existência muda, intensa, viva e presente. Ecoa a vibração nunca expressa. Emana o que esteve preso, acreditado morto ou mutilado. O balbuciar foi capaz de alcançar os domínios da indiferença quando, simultaneamente, escapava da boca e atravessava os tímpanos. A quem pode ferir mais? A quem emana a palavra ou a quem a ouve? Fato é que as palavras, ditas ou implícitas, precisam repercutir, constituir sentido, além do intencional, o receptivo.

E calar pode ser mais eloquente que dizer. A mudez pode ser menos sofrida, mais cômoda e menos beligerante do que a boca no trombone.

Diante da falta de opção, calar traduziu sempre uma incapacidade de manifestação.

Agora que a voz saiu, é preciso optar entre falar ou calar. E sempre que se instala uma condição de escolha, há uma procura desesperada por alternativas que sabemos que nos levarão a caminhos antes não cogitados.

Que força tem ou quer ter uma voz que pode, somente a partir de agora, incorporar tudo o que sempre esteve sob a privacidade do silêncio por falta de condição de compartilhar? Muda por impotência ou por incompetência. Quem percebe a diferença? Quem está disposto ouvir o grito?


Quando a gente pensa que que tudo está perdido é que a gente percebe que realmente pode ter razão: tudo pode estar perdido meeesmo.
E então é que dá pra começar a entender a vida como algo que acontece apesar da nossa existência, da nossa vontade. Porque parece-me, às vezes, que as coisas são como são porque as fiz assim, ou porque as entendi dessa ou daquela forma.
Apesar de sentir um vazio enorme na independência dos fatos, não deixo de sentir um alívio ao enxergar um mundo que "é" sem a minha interferência.

Saída


Toda a solução encontrada para resolver um problema é boa. Não porque solucione necessariamente a questão, mas porque livra-nos de ter que tentar continuar procurando uma resposta.
Acho que a minha bola de cristal está com defeito...

Fabulinha sem graça


Era uma vez um rebanho de ovelhas brancas, muito brancas.
Um dia, inexplicavelmente, uma ovelha branca deu à luz a uma ovelha preta. Esta ovelha preta viu que era diferente de sua família. Sentiu-se infeliz por isso. Para tentar compensar essa diferença, fazia todos os esforços possíveis.
No entanto, notava que pouco importava o quanto se esforçasse: não conseguia deixar de ser preta.
Por ver inúteis seus esforços, finalmente convenceu-se de que nunca seria branca e desistiu de tentar ser igual ao seu rebanho.
Percebendo a prostração e desânimo da ovelha preta, as ovelhas brancas reuniram-se e resolveram contar para a ovelha preta que todas as ovelhas brancas eram cegas.

Segunda Pessoa


(Para Jo)
Quando era pequena, imaginava uma outra eu que se passava por mim para que eu mesma continuasse brincando na hora de tomar banho. A outra eu comeria miúdos de frango, arrumaria os brinquedos e estudaria para as provas de matemática. Cresci com a idéia de que um dia viraria duas. Amadureci com esse absurdo pensamento latente.
Em meu minúsculo apartamento alugado, tinha a companhia de um gato esquivo. Apesar de sua índole arredia e dos humores que propagava, sinalizava vida no ambiente inerte do quarto e sala em que eu vivia. Era a quem eu dedicava atenção. Água e ração todos os dias, areia limpa uma vez na semana. Os cuidados comigo mesma cabiam num espelhinho quinze por dezoito de moldura alaranjada pendurado no banheiro. Cabelo amarrado, pele limpa, protetor solar. Meu corpo só subvertia minha pouca vaidade quando via o porteiro do edifício. Meu coração pulsava na garganta e no estômago. Contraía a barriga e passava a língua nos lábios para disfarçar a secura íntima que infalivelmente se manisfestava na minha boca.
Clientes são criaturas volúveis, infiéis, que pagam minhas contas. Não hesitam em ir com a primeira manicure livre da agenda. Por isso, eu tenho sempre mais unhas pra fazer do que horários na agenda. Não sem rir de mim mesma, deixava emergir minhas lembranças e me divertia imaginando que um dia seria duas e não precisaria de tanto esforço para sobreviver.
Atendia nos intervalos, atrasava o próximo horário, ficava até tarde, mas dava conta de todas. A vida de manicure é assim, ainda tem que dar graças a Deus que as unhas crescem e sempre tem trabalho.
Terça feira é dia de pouco movimento. Esterelizei os alicates e organizei os esmaltes: escuros pra um lado e clarinhos pra outro. Substituí toalhas usadas por outras limpas. Estranhamente percebi que, dependendo de onde eu estava, me via inúmeras vezes refletida nos espelhos numa seqüência infinita. Me acometeu uma estranha tontura e entre espantada e incrédula, me avistei lixando o calcanhar de uma senhora gorda que tomava cafezinho com a perna apoiada na minha coxa. Me senti perdida. Mas era eu mesma, tinha certeza, porque eu sempre apertava a língua entre os lábios e franzia um pouco a sobrancelha quando estava concentrada. De pé, perplexa, parei de respirar por instantes. Olhei de novo para o salão e me vi agora curvada tentando desencravar a unha do dedão feio da senhora gorda. A recepcionista tocou meu braço e disse que a cliente das nove estava esperando. Saí, então, do meu pequeno transe e me certifiquei de que estava viva quando aspirei o ar que recendia acetona.
Com um meio sorriso, conduzi a mulher de esmalte lascado até a mesinha ao lado de mim mesma que estava agora pintando as unhas do pé da senhora gorda. Aquela eu, que já estava sentada, avisou que estava terminando e já ia pegar a próxima cliente. Não pude avaliar a situação, atendendo uma cliente após outra. Afinal, passei o dia de frente com alguém que, contraditoriamente, não me pareceu familiar. Observei meu porte, meu olhar, meu sorriso. Diferente daquela eu que surgira, os meus legítimos ombros eram curvados, denunciando uma falta de ânimo que parecia ancestral. Talvez tantos anos esperando para existir a tenham feito mais disponível e sorridente. Ou tivesse emergido de mim há muito tempo e assumido vida própria e só agora eu a enxergara. Ou era um lapso de mim, apenas ocupando lacunas às quais eu não estava sendo capaz de preencher.
A outra era tão ágil e gentil com as clientes quanto eu, despertando em mim uma inexplicável inveja. Se eu era ela como poderia invejá-la? Será que era isso que diziam sobre não estar bem consigo mesma, sobre não estar de bem com seu próprio eu? Éramos aparentemente iguais, mas eu percebia nela nuances intraduzíveis de vivacidade. O porteiro que me estreitava a traquéia nunca me olhara a ponto de me tirar do meu torpor natural. Apesar de ser manicure, minhas unhas nunca estavam arrumadas e não tinha tempo de me cuidar - ou não achava que valesse a pena. A semana passou tranqüila, todas as clientes foram atendidas no horário.
Sábado minha agenda ia até às nove da noite. Sempre saía do salão exausta e chegava em casa depois das dez. Naquele sábado estava menos cansada e planejei pedir para aquela eu tirar um filme na locadora. Quando terminei de passar o óleo secante nas unhas da última cliente, vi eu despontar no salão. E não estava disponível: de unhas pintadas e cabelos escovados, passou no caixa, recebeu o pagamento da semana e saiu de braços dados com o meu porteiro, que, afinal, eu bem sabia que jamais olharia para mim.

Uma amarga visão

De avental surrado, sempre a postos para as lidas pequenas, picava salsa e cebolinha com uma faca afiada. Se dava um talho no dedo, botava sal. Sal era bom, porque estancava o sangue e não deixava arruinar. Amarrava com um pedaço de trapo, dava dois nozinhos e pronto. Escolhia o feijão sem deixar nenhuma pedrinha, tirava a casca da laranja numa tira inteira.
Se achegava na vizinhança perto do meio dia para dar uma mão no serviço e amiúde livrava a barriga da miséria. Tinha habilidade e paciência, atributos essenciais pra fazer doce de laranja azeda. Precisava tirar a casca fina e o bagaço, ralar a parte branca até deixar bem lisinha, cortar em cruz e deixar de molho em nove águas, por nove noites, trocando a água todos os dias. Não sobrava nenhum amargo sequer. Pelo trabalho, podia provar um pouco do doce ou levar a sobra do almoço, com o que forrava o estômago antes de dormir.
Na época de eleição, fizeram seu registro civil. Pela aparência - e por conveniência - teria nascido em 1914. Já moça crescida, ainda não tinha marido, mas não perdia de vista a esperança. Recolhia os estojos vazios de ruge e os batons ressecados jogados fora.
- Nasci dia 10 de setembro, dizia.
Fugia do sol que nem gato da água, tinha horror de ficar mais preta. A chamavam bugra. Católica fervorosa, temente a Deus e devota de São Jorge, rezava novenas por encomenda e pedia pra Santo Antônio lhe providenciar casamento.
Hermitanha lavava pra fora. Era lavadeira dos soldados. O fardamento castigava suas mãos e suas costas, embora pesado, rendia bons trocados. Gostava de homens de farda, de sobrecenho cerrado. A austeridade dos uniformes a fascinava. Vislumbrava a figura de um militar altivo, impecável, grave e sóbrio, enquanto batia a roupa no tanque. Em suas ilusões, seria comandada pelo olhar do milico. Quando fosse dele, atenderia suas ordens e pressentiria suas vontades. Sem alcançar definição para seus anseios, apenas intuía que se tivesse significado para alguém de respeito, de alguma forma, mostraria ao mundo que também tinha valor e merecia ser respeitada.
Numa tarde mormacenta de janeiro, um homem fardado veio contratar o seu serviço. Alto, sério, formal. Não pôde disfarçar seu encantamento, suas pernas tremeram. Escondeu um sorriso incontido com a mão murcha da água com sabão. Arrancou o avental ensebado na inútil tentativa de disfarçar seu miserável aspecto. Ele, irrepreensível, acertou dia e preço e se foi. Encostada na cerca suja de terra, Hermitanha percebeu que estava descalça e enxergou-se esgedelhada na poeira vermelha e morna que pairava ao seu redor. O ar parado consentia às moscas solenizarem sua penúria.
Hermitanha correu se assuntar na vizinhança. Getúlio Souza Mendes parava na pensão da rua de cima. Sargento Mendes viera transferido semana passada. De essência rude e de pouca conversa, pegava serviço por alguns trocados, pois queria juntar dinheiro para comprar uma casa. E não recusava doce de laranja azeda. Os devaneios de Hermitanha exacerbaram-se, incorporaram rosto, nome, sobrenome e patente. Desejou secretamente que Getúlio Mendes assumisse seu destino.
Seu sargento deixava a roupa suja na segunda e recolhia a farda limpa e passada na quinta-feira. Trocavam palavras protocolares, sempre à distância. Nada havia de concreto, nenhuma proposta ou assanhamento. Ele era tão reservado quanto ela sempre sonhara. Nada de sorrisos, nem de conversa fiada. Seu pouco falar, sua imponência e frieza, tudo nele correspondia ao seu sonho matrimonial. Sargento Mendes não era homem de arreganhos e galanteios. Não esperava dele avanço algum. Por certo o apanharia pelo estômago. Aventou conquistá-lo com um doce de laranja azeda.
Comeu menos, naqueles dias. Sempre que lhe cabia algo, dava um jeito de trocar por um pouco de açúcar ou uns cravinhos-da-índia. Capinou o quintal da vizinha por algumas laranjas do pomar. Premeditou a investida de forma a aprontar o quitute justamente na segunda-feira.
Terminou o doce bem cedo e serviu-o disfarçando a rachadura do único pratinho que tinha em casa. Reservou a porção servida para apresentá-la na hora certa.
Quando Getúlio Mendes veio entregar a roupa, não titubeou em pedir um minuto antes de recebê-la. Correu do portão à cozinha e de lá voltou lá ao portão num só pulo. Perguntou à queima-roupa se ele gostava de doce de laranja. Como ela esperava, ele foi seco, mas não pôde dizer que não. Deixou escapar, quase se desculpando: - É.
Sem deixar tempo para recusas, ela emendou: - Aprontei hoje cedo, prova! - entregando a iguaria nas mãos do sujeito. Atingira seu ponto fraco. Ele recuou, mas não teve como esquivar-se.
Aflita, Hermitanha grudou os olhos no militar esperando sua reação. A fisionomia dele alterou-se de forma imprevista, seus olhos arregalaram-se e a sua boca arreganhou-se, de maneira a abocanhar o tolete de doce. Sua feição sisuda adulterou-se de forma quase sensual e devorou o bocado de um só golpe, esticando ainda a língua para arrematar uma gota da calda que escapulia pelo canto da boca. Quando terminou de engolir, apertou os olhos e, num movimento libidinoso, inclinou a cabeça um tantinho mais para que a língua alcancasse o pires e o pudesse lascivamente lamber.
A cena atingiu Hermitanha como um golpe. Não, não. Jamais seria daquele asqueroso. Sentiu uma dor lancinante no peito, vendo suas quimeras lançadas ao chão, arrancadas de suas entranhas e desfalecendo repousadas na saliva nojenta daquele ser repulsivo. Sentiu faltar-lhe o chão, seus sentidos fugiram por alguns instantes. Nauseada e cheia de repugnância, arqueou-se para tomar forças.
Repentinamente, apossou-se de si mesma e arrancou fôlego de suas profundezas para uma cuspida furiosa, que arremessou em cheio na cara daquele imundo que possuiu seu sargento.

Rito de Passagem

Nasci de madrugada. Meu pai esperou horas na sala da maternidade, tomando café e andando. Quando fui colocada em seus braços, ele se atrapalhou ao desfazer-se da xícara e pingou café na minha mantinha branca.
...
Tentei cobrir a cabeça para não deixar a claridade invadir o meu sonho. Aos poucos, a voz da minha mãe se misturava aos diálogos e as cenas se desfaziam em realidade. De novo o despertador. Depois da lenta tortura para abandonar o calor das cobertas, estava de uniforme sentada na cozinha tomando café. Na pressa para recuperar os minutos perdidos, bati o cotovelo na xícara e derramei o café na minha camiseta branca.
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Subi a lomba com a pressa de quem tem medo. Precisava chegar a tempo de assinar os papéis que mudariam meu estado civil. Os óculos escuros disfarçavam a noite mal dormida. O cartório estava lotado, algumas pessoas se acomodavam nas poucas cadeiras dali e outras se ajeitavam como podiam para aguardar sua vez. Avistei uma garrafa térmica com café numa mesinha perto da placa onde se lia "Retire uma Senha". Servi num copinho plástico que, de tão fino, deixou queimar os meus dedos. Alguém esbarrou no meu braço e o café saltou do copo para o meu impecável terninho branco.
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Tirei uns papéis da gaveta, recoloquei-os na ordem inversa. Deliberadamente, demorei mais do que o necessário para terminar a tarefa. Mexi o café sem pressa. Esvaziei a xícara até a metade e larguei-a no canto da mesa. O relógio marcou seis horas, já podia bater o ponto. Retoquei o batom no espelhinho que tinha na gaveta. Na intenção de levantar, me apoiei na mesa e desloquei a xícara, virando o resto do café sobre a minha camisa branca.
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Sentei na cama, tentei ajeitar o cabelo e lambi o dedo pra ajudar a tirar um pouco o borrão de rímel que manchava os meus olhos A bandeja era pequena para tudo: café, leite, pão, frutas, geléias e um pacotinho. Entre feliz e surpresa, não sabia ao certo por onde começar. Preferi então servir logo o café e abrir o presente que estava cuidadosamente colocado junto ao pãozinho. Por tanto querer cuidar, bati na xícara e o café se espalhou pela minha camisola branca.
...
Repousava inerte, o rosto lívido e inexpressivo, as mãos entrelaçadas segurando um terço que levava para a eternidade. Da cintura para baixo, estava coberta de flores. As pessoas serviam café de um bule estrategicamente colocado em uma salinha contígua ao salão onde eu estava, o que dispersava o aroma da bebida que se misturava ao perfume de jasmim. Debruçando-se sobre meu corpo para um último recado, alguém inadvertidamente deixou escorrer café da xícara sobre o meu vestido imaculadamente branco.
(Publicado no livro Travessias)

Transparência

Senti vontade de ficar  maisna cama. Era muito cedo e estava frio. Saí debaixo das cobertas num átimo, para não me arrepender. Sentia sede e verti dois copos d’água garganta abaixo. Vesti um casaco grosso, manta e luvas, para manter no corpo meu frágil calor sonolento.
O ônibus parou ao meu sinal. Desembarquei quase uma hora depois, após alguém puxar a corda da campainha. Caminhei até o prédio, subi o elevador e entrei na sala onde trabalhava. Estava claro, as persianas levantadas convocavam a luz do sol a tornar o ambiente translúcido. Apesar do ar gelado, abri a vidraça e deixei o vento desfazer o meu cabelo. Enxergava algumas pessoas, tive a impressão de que ninguém me via. O meu vasinho com flores e o porta-retratos não estavam sobre a mesa. Não quis tirar o casaco nem a manta, me desfiz apenas das luvas. Estava muito frio. Meu corpo tremia. Liguei o computador: nenhum e-mail. Tentei uma ligação para a lanchonete, mas não acertava a senha do telefone. Respirei fundo e me belisquei para me assegurar de que não estava sonhando.
Era indescritível o brilho delicado que reluzia e se espalhava ao meu redor. Enquanto isso, uma leveza extrema me invadia, nenhum esforço para me movimentar, apesar do peso das roupas. Senti minha bexiga cheia, precisava esvaziá-la com urgência. Fui até o banheiro. A porta estava extremamente pesada, a torneira apertada demais. Não tinha forças suficientes para comandar meus braços. Me enxerguei no espelho, estava pálida, mas bonita, como num retrato atras de um vidro, longínqua. Meu cabelo estava despenteado ainda pelo vento da janela, mas mantinha aquecidos meu pescoço e minha cabeça. Senti um arrepio estranho, o vento frio entrava pela fresta da basculante e era como se me atravessasse. Aspirava meu próprio hálito. Desejei o calor da minha cama, o aconchego dos cobertores, o calor de outro corpo. E me senti condenada àquela etérea sensação. Quando casar sara, depois dos quinze, no final de semana, no fim do mês, depois do inverno, no ano que vem... Esses prazos que apontavam sempre para outros prazos no infinito se diluíram no ar.
Minha embalagem à vacuo me poupou da deterioração no contato com o mundo. Agora havia m orifício no pacote por onde, ao mesmo tempo em que o ar entrava, escapavam-se minhas defesas. A minha secreta inadequação se dissipava enquanto minha imagem no espelho se desfazia. Com esforço, consegui abrir uma torneira. Respirava então com toda a pele, o corpo todo, o ar devorava meus pensamentos numa fagocitose inusitada e eu não era naquela hora mais que um espectro.
O ralo não deu vazão à água e a pia transbordou. Numa extrema tentativa, estendi o braço para fechar a válvula. A água cessou.  
Fui tragada pelo redemoinho que se esvaía pelo cano abaixo. 

Pour Elise

(Três minutos para liberdade)
Naquela noite consegui sair do pedestalzinho de ímã, tal como um condenado que escapa de seu grilhão. Percebi que minhas pernas, por estarem desde sempre justapostas, acabaram por colarem-se uma à outra e não havia modo de que uma se movesse à frente da outra para que eu pudesse dar um passo e outro ao invés de somente rodopiar, rodopiar...
Com certa dificuldade consegui levantar a tampa o suficiente para esgueirar-me dali para fora sem que meu deslocamento detonasse a melodia que se repetia ad eternum em seu apelo por movimento. Meu tamanho diminuto favorecia a execução do meu projeto: passaria com pouco esforço por debaixo da porta, apenas me desvencilhando daquela sainha engomada. Aos pulinhos, pude alcançar a beirada da cômoda e escorregar até a última gaveta, que estava entreaberta. Dali ao chão, era somente um salto: “toc” foi o barulho que fiz quando caí no piso frio.
Estranho era que, pela primeira vez liberta da rotina incessante em torno do mesmo eixo, a melhor sensação era a de não estar vendo minha própria imagem no espelhinho interno da tampa. Isso era mais catártico do que a chance de me movimentar em sentido diverso do que me fora determinado.
Meus braços franzinos por longo tempo erguidos por sobre a cabeça tinham agora espaço para novos movimentos, porém as delicadas maneiras de meu eterno balé não me prepararam para a força que eu precisava fazer agora para compensar a falta de mobilidade de minhas pernas. Olhava à volta à procura de minha imagem refletida, num cacoete do qual era impossível me desfazer. Era como se eu não existisse sem o meu reflexo.

Estava cansada mais do que de costume e sentia falta do magneto que me prendia os pezinhos para me dar equilíbrio. De onde estava, via a fresta por onde haveria de passar para ganhar o mundo. Eram poucos metros, a exata distância que me separava do destino que havia escolhido.
Meu plano estava delineado: precisava ter a atenção do gato sem acordar ninguém. Contava com o dono daqueles dois olhos gigantes que por vezes me observavam do fundo de uma floresta de pelos brancos. Se conseguisse ultrapassar a fronteira do quarto, não seria difícil chamar o bichano. Sabia que talvez ele eriçasse o pelo e fizesse algum barulho ao me ver, mas se eu conseguisse me fazer apetitosa, era o que contava. Precisava ser devorada. As entranhas do animal eram o único veículo de que dispunha para me levar para o lado de fora, contando que a resina de que sou feita não seria digerida e confiando com sua costumeira voracidade. Sendo engolida, ficaria nas tripas do felino até ser expelida para o mundo. A idéia me causava certo asco, mas não mais do que o que tinha suportado desde que fui colocada naquela caixinha.
Dividia a maciez do veludo acolchoado com outros objetos, anéis de pedras brilhosas e algumas correntinhas. A música era suave e de uma nostalgia profunda de algo imemorial. Sentia saudades de quando nunca fui criança e nunca brinquei no quintal. Uma mulher aparecia sempre junto com a música. Primeiro retinia o som metálico e seco da engrenagem da corda, depois vinham a música e a mulher. Ao abrir-se a caixinha, eu era postada no ímã, enquanto ela escolhia os adornos e se admirava. Tinha ganas de pular e me prender aos seus cabelos, tinha ganas de encarnar na sua pele.
Ainda me arrastando apoiada nos cotovelos, quase alcançava o vão entre o chão e a porta. Havia uma sensação de esperança e conquista que extrapolavam qualquer sentimento de impossibilidade e sofrimento que pudesse emergir naquele momento de esforço supremo. Senti uma presença enorme se aproximando, vislumbrei um vulto imenso a um metro do meu corpinho gelado e trêmulo, e logo um pé e outro e de novo o primeiro, que tratou de me estraçalhar.

Publicado no Livro Horizonte Noturno